Por Roseli M. Kühnrich de Oliveira
Considero um privilégio ter sido criada ouvindo e, depois, lendo a Bíblia. Mas foi somente já adulta que iniciei uma jornada de leitura intencional e devocional. Muitas pessoas me ajudaram e ajudam a me aproximar, não apenas intelectualmente, do Deus que fala por meio do fogo negro, da tinta impressa no papel. Ajudam-me a ler a Bíblia não somente como algo que se coloca sob o microscópio, para ver dissecado, mas para ouvir a voz, a “Bat Kol”, que nos fala. Conhecer para amá-lo mais faz toda a diferença!
Aprendi muito com o amigo doutor Carlos José Hernández – psiquiatra argentino que por longos anos tem desenvolvido a prática devocional da leitura bíblica – a saborear a leitura, a meditar nela e a fazer perguntas internamente.1 Outra referência pessoal são os retiros individuais de silêncio que fiz, faço e atualmente reproduzimos, em grupo, sob a direção de Lilo.2 Tem sido animador experimentar, de forma efetiva, os efeitos terapêuticos da Palavra.
Tendo sido criada em igreja evangélica, conhecendo racionalmente muito da Bíblia, me deparei com um “deserto” que não havia imaginado. Como o filho mais velho da parábola do pai amoroso, me vi “perdida dentro de casa”, sem me identificar com o Pai. Sabia que Deus me amava, mas não sentia isso como verdade para mim. Então, recebi de uma amiga dois presentes. O primeiro, o livreto de Hernández, que me fez desejar ler a Bíblia com calma, interagindo com o texto *. O segundo, começar uma jornada de espiritualidade mais saudável, trabalhando em meu ser e realidade pessoal, familiar, profissional e de igreja, nos retiros, aprendendo a leitura orante, o que eu nunca havia feito nem conhecia. Percebi em mim mudanças significativas, que foram acontecendo e acontecem, lentamente, ao longo dos anos. Considero essa a formação mais consistente que faço, por ser extremamente centrante e me fazer perceber as dissonâncias que o Espírito Santo aponta pelo texto bíblico.
Por exemplo, estou preparando uma reflexão sobre Maria, mãe de Jesus, para repartir na igreja. Faço a leitura orante e dedico algum tempo para imaginar a cena do anjo, irrompendo na vida da adolescente e saudando-a: “Salve, agraciada!”. Coloco-me na cena, tento imaginar o local, ver a jovem e o grande Gabriel, feliz mensageiro de boas novas. Tento escutar o tom de voz deles, a forma como dialogam. Releio várias vezes o texto, buscando todas as versões bíblicas ao meu alcance. Algumas palavras e expressões chamam minha atenção. Paro, reflito.
Dou-me conta de como são as minhas reações frente ao inusitado, experiências em que me foge o chão, em que, suspensa em incertezas, preciso dar uma resposta. Lembro-me de algumas ocasiões em que me senti também exposta, mesmo sabendo estar correta.
Vou permitindo que o texto me informe sobre mim, sobre planos e expectativas que sumiram em instantes quando coisas inesperadas aconteceram.
Volto-me para Maria, tão jovem, tão centrada e autêntica em suas perguntas. Fui criada podendo fazer muitas perguntas. Sempre faço! Acredito que essa perguntação nos mantém mais atentos a nós e ao que nos cerca.
Percebo em Maria a certeza de que a aparição não é alucinação; ela sabia da promessa! Mas me impacta que ela tenha compreendido tão rapidamente do que se tratava. Concluo que ela tinha intimidade com os textos proféticos. Seu cântico mostra uma densidade teológica surpreendente!
Volto a me olhar e atento para a necessidade de uma leitura mais cadenciada da Bíblia. Essa leitura acontece nesse movimento, em que vejo o que o texto diz e o que Deus me diz, e tento olhar para mim.
Encerro meu tempo de leitura meditativa com uma oração, na qual respondo ao que o texto falou ao meu coração. Aquilo de que me dei conta se transforma em súplicas e ações de graças.
Ergo novamente os olhos para os montes, de onde me vem o socorro?
Na certeza de ser amada, prossigo, em contentamento, em família e comunidade. Emanuel, Deus conosco.
Roseli M. Kühnrich de Oliveira é psicóloga, terapeuta familiar, docente por Eirene e Faculdade Luterana de Teologia e membro pleno do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos (CPPC).
Notas
1. O livreto do doutor Carlos Hernández deu origem a encontros de diversos grupos no Brasil e na Argentina e resultou no livro Leiamos a Bíblia – Guia para leitura meditativa, publicado pela Editora Grafar.[ Editora Grafar – Leiamos a Bíblia: guia para leitura meditativa]
2. Lieselotte Hedderich, ou Lilo, tem ensinado muitas pessoas a se reencontrar com Deus, por meio da leitura contemplativa da Palavra de Deus, em meio ao silêncio e à natureza.
Publicado na revista Ultimato n. 399
