Para quem for a São Paulo, um tour não deslumbrado!
São Paulo são muitas. Entre os 31 km em linha reta que distanciam a zona sul e da norte e os 26 que separam a zona oeste da leste, acontecem inúmeros fenômenos sociopolíticos na megalópole. O turista comum que busca apenas entretenimento e gastronomia terá muito a satisfazê-lo. Mas quem deseja uma imersão diferente e conhecer a alma dos grupos humanos que constroem essa cidade, aquilo que geralmente não sai nas propagandas de megaeventos tipo a Copa de Futebol e a Olimpíada, poderá ter uma grande lição de antropologia e psicologia social, religiosa, economia política e sociologia.
Prá começar, encontram-se as aldeias indígenas no extremo sul e oeste da cidade. A Tenondê Porã, Krukutu e Barragem em Parelheiros a 70 km da Praça da Sé. E a Terra Indígena Jaraguá, na zona oeste. Esses descendentes dos povos originários, quase totalmente dizimados, padecem de descaso multissecular. Nômades, estão cercados por bairros que lhes limitaram a área de sobrevivência.
No pequeno cemitério indigena de Parelheiros avistamos pequenas elevações que demarcam uma criança enterrada. Filhos de meninas de 12, 13, 14 anos. Vitimas de doenças tratáveis. Várias delas com histórico de abusos por homens da aldeia. Problemas com álcool e ausência de rendimentos mantem a maioria na miséria sendo que alguns homens visivelmente se beneficiam de doações e tem até carro. A lógica de abuso de poder e machismo é mesmo universal! Assim estava a região quando a visitei em 2009.
Podemos diariamente, agora em 2024, encontrar mulheres guaranis esmolando perto de estações de metrô, sempre com duas três crianças, vendendo artesanato barato e esperando alguma ajuda. Também buscando sobras de feiras-livres nos bairros.
O poder público não se incomoda. E a população desinformada e induzida por políticos perversos os enxerga como privilegiados donos de terra e preguiçosos!!!
Vamos para o centro da cidade. Para seu miolo.
Tem a Pinacoteca, ao lado de um bonito parque na Av. Tiradentes, com acervo sempre renovado e bom restaurante. Do outro lado da avenida, ao lado do Quartel da Rota, fica o Museu de Arte Sacra, com quadros e utensílios de emprego litúrgico. E numa sala à parte, vale ver uma miniatura de Vila Italiana.
No noticiário nacional sempre aparece deprimentes quadros referentes à grande região da Cracolândia. Deparamos com milhares de humanos quase-mortos entorpecidos por drogas e crônica miséria e histórico de violência familiar e policial. Vivem amontoados e andam como zumbis. Alguns desnudos. Urinam e defecam nas ruas. Para adquirir o crack fazem furtos a luz do dia, sem a maldade de bandidos frios. Claro que há bandidos que os exploram e os utilizam. Mas alguém quer ouvir suas histórias de vida? Não são só vítimas, vários já tiveram bons empregos e famílias, mas, com as drogas, perderam esperança, dignidade, identidade. Vivem por instinto. Pessoas adoecidas e histórias de tragédias familiares.
No contato direto com eles percebe-se que há grande carência de afeto e filiação. Falam da saudade de casa, da mãe, da avó. Praticamente todos/as reverenciam Deus e estão abertos a Jesus que entendem ser diferente dos padres e pastores que conheceram ou veem na tv.
Há um palpável vazio espiritual nessa gente. Desenvolvem uma sociabilidade cúmplice, dividem angústias, crack e comida. Também presente conflitos e disputas que geram brigas.
Dormem ao relento sobre papelão e em meio a lixo. O aspecto caótico do ambiente, nos vários quarteirões onde vivem, é reflexo da desorganização psíquica de que padecem, agravada pela ausência de adequada e continua política de saúde multidisciplinar. Estas vidas descartadas atestam um sistema perverso e excludente e Estado omisso.
Atendendo os reclamos de pessoas vítimas de seus furtos, sofrem continuadas intervenções policiais com promessas de políticas de internação voluntária ou compulsória. Suas barracas de plástico e papelão são derrubadas e são expulsos como baratas. Assim que são dispersos se espalham pelas ruas vizinhas constituindo outros núcleos. Assim o incompetente poder público cria diversas outras cracolândias na cidade. Comerciantes e moradores próximos sofrem com essa dispersão caótica.
Ongs enviam voluntários para mutirões de cuidados pessoais e alimentação, humanizando um pouco a relação destes com a cidade. E fazem ligação com locais de acolhimento, como comunidades terapêuticas, sempre criticadas e nunca ajudadas por órgãos que tem poder legal e recursos para cuidar. Tudo continuará num ciclo interminável.
Governos de direita, da esquerda e ultradireita falham juntamente com o sistema judicial no enfrentamento desse grande drama humanitário e problema psicossocial. De deputados senadores e vereadores, então, nada se pode esperar de efetivo, humano, de boa técnica para solucionar o problema. Vivem de costas para esta população.
Estes humanos desfigurados estão acostumados ao desprezo das “pessoas de bem”. Mas conhecem bem um certo samaritano que trabalha a anos entre eles e é alvo de ataques de insensíveis. Vocês sabem de quem estou falando! Sim, é ele, o padre Júlio Lancellotti. Que a anos os escuta, acolhe, abraça, providencia comida, roupa, aconselhamento, ressocialização e defesa. Gente do tipo dos que criticavam Jesus por andar com prostitutas e pecadores e leprosos o consideram perigoso comunista!
Nesta mesma região tem também os samaritanos da Cristolândia, iniciativa da 1a Igreja Batista de São Paulo na Praça Duque de Caxias. Em seu início teve a Susie Duppong, corajosa mulher que caminhou ao lado destes que estão à margem do caminho. A quinze anos realizam um excelente trabalho de acolhimento e ressocialização. No Google encontre reportagens sobre essa Ong de excelência.
A poucas quadras tem a CENA, Comunidade Evangélica Nova Aurora, na rua Aurora, que a uns vinte anos socorre, evangeliza e acompanha pessoas trans, gays, prostitutas e mendigos. Apoio em necesidades de higiene, alimento, remédio, encaminhamentos paa profissionalização.
Por todas as ruas nesta região encontraremos milhares de famílias de venezuelanos, de várias etnias, acampadas, ou ajuntadas em quartos de hoteis sociais e mendigando. Em companhia de bolivianos, equatorianos, argentinos, peruanos, vendendo artesanato e tocando flautas. Muitos deles sujeitos a abusos de empregadores que os querem em condições análogas à escravidão, conforme apuração e denuncia na Assembleia Legislativa de São Paulo feita pelo dep. Carlos Bezerra em 2013.(https://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=334512).
O turista merece uma pausa.
Para distensionar, visite o Museu da Língua Portuguesa,num belo prédio de estilo ingles, ao lado da Estação da Luz, onde o metrô e ramal ferroviário se encontram. Uma multidão muito diversificada circula ali. Estamos no limite do bairro a Luz com o Bom Retiro. Coreanos, muitos deles evangélicos, dominam o comércio de vestuário na região onde árabes e judeus ainda se fazem presentes de forma amistosa. Algumas antigas sinagogas de ultraortodoxos e de ortodoxos fazem circular homens e meninos trajados de preto e grandes chapéus especialmente no shabat – 6a feira a partir das 18:00. A maioria dos judeus a tempos migrou para Higienópolis e outros bairros de alto padrão.
Do outro lado da Av Tiradentes e ao lado de um Quartel General da PM tem um bairro com artigos e enxoval para noivas. Coisas muito chiques e também populares. Vale conhecer.
Saindo deste recanto dos sonhos e caminhando rumo à Praça da República, você notará alguns prédios de vinte, trinta andares abandonados a anos pelos proprietários e ocupados por milhares de sem-teto que ocupam esses lugares insalubres como único recurso de abrigo.
E o que acontece? Vira e mexe, a justiça intervém dando ganho de causa aos donos relapsos que não abrem mão da propriedade e exigem que sejam expulsos. Um horror! O agora deputado Boulos é conhecido pela firme defesa desses moradores antes sem teto e vivendo na rua. Ele, como o padre Lancelotti, é atacado como um perigoso terrorista!
Chegando na Praça da República você estará em outro mundo! Um centro que reúne milhares de tipos humanos sexual e socialmente diversos. Cinemas exibem filmes exclusivamente pornôs, dia e noite. Já ao entardecer e até o amanhecer, milhares de homens e mulheres, idosos, adolescentes, em busca de encontros de corpos (ou alma?) com quem se dispuser. Com ou sem dinheiro. Quem lhes estenderá a mão? Quem poderá julgá-los?
Pertinho dali tem a austera Universidade Mackenzie e a suntuosa sede da tradicionalíssima entidade católica fundada por Plinio de Oliveira, com oratório para devoção à Maria na calçada. Homens de terno, aspecto grave, se ajoelham e rezam. Estamos na Av. Angélica, onde se encontra um dos shoppings mais sofisticados da capital. Um outro mundo e público, corpos sarados.
Retornando para região da Pça da República e Sé, tem-se várias belas arquiteturas de igrejas como a Cathedral Presbiteriana na rua Nestor Pestana e a Igreja da Consolação. Desta igreja indo para a Pça da Republica está o edifício Itália e o curvo edifício Copon, projeto do Oscar Niemeyer.
A poucas quadras entramos na Av São João com Ipiranga cantada pelo Caetano. Vizinha ao Largo do Paissandu que liga a Estação da Luz através da rua Sta Efigênia, grande centro de eletrônicos e instrumentos musicais. Comerciantes dizem que a maioria das vendas de instrumentos é feito para “crentes”, dado o costume de conjuntos corais e orquestras nas igrejas evangélicas. Essa cultura musical nas igrejas responde pelo grande número de músicos evangélicos nas orquestras sinfônicas do Brasil.
Caminhando para o marco zero na Praça da Sé, avistarmos arranha céus, como o Edifício Martinelli, a sede do Banco do Brasil e Caixa Econômica, da B3 (Bolsa de Valores), o antigo prédio do Banespa, agora Santander, o Centro Cultural B. Brasil e o da Caixa Econômica, sempre com boas Mostras Culturais e entrada gratuita.
A Praça da Sé acolhe uma multidão de exóticos tipos humanos, brasileiros e estrangeiros. Indígenas, mendigos, golpistas, vendedores de documentos falsos e remédios milagrosos.. A tensão de quem anda em ambiente assim é quebrada com os risos despertados pelos repentistas nordestinos e os desafios cantados. Também veremos tocadores de instrumentos aguardando esmolas para tratar de filho ou outro familiar que exibe uma ferida ou tumor à espera de tratamento.
Em todo o centro, vendedores de novidades e pregadores superpentecostais atraem dezenas de ouvintes. Algumas vezes acompanhei do início aoo fim a pregação de um homem ou mulher vindo da periferia, vestidos com a melhor roupa que tem, grande Bíblia aberta. Alguns vem acompanhados com duas, cinco pessoas, tendo às vezes um acordeon ou violão e cantam um louvor a Jesus. O pregador inicia chamando o público para ouvir a Palavra de Deus. A ênfase é o chamado ao arrependimento de pecados para se livrar da ira divina. Não era assim a pregação de João Batista e mesmo de Jesus conforme o princípio dos evangelhos? (Mt 3.1-3; 4.17; Lc 3.7-14).
Mesmo que alguns populares façam zombarias, os pregadores não se abalam. Chama atenção o respeito da maioria dosouvintes e o vivo interesse com que escutam. Em certa ocasião, havendo conversas entre o pregador e o público, dei respaldo à fala dele junto aos ouvintes reforçando o valor de que todos possam conhecer Jesus na Biblia.
Deste modo, de ajuntamentos assim, nasceram milhares de igrejas espalhadas na cidade. Tem mais igrejas pentecostais do que farmácia e boteco! De todo tamanho e tipo de público. Fenômeno religioso que escapa do controle das tradicionais instituições religiosas. Efeito da leitura da Bíblia por gente simples. Algo bem democrático. E pouco estudado na academia e maltratado na mídia global, em novelas e comentaristas de noticiários. Importa distinguir esses pastores e igrejas populares das emprejas da tv e seus ricos pastores.
Na Baixada do Glicério, a algumas quadras da majestosa Catedral da Sé, tem o templo da Igreja Pentecostal Deus é Amor. Frequentada pelo lupenproletariado, os mais pobres da cidade. Nos cultos catárticos o reforço de identidade pessoal referenciada em Jesus.
Entre o Glicério e o metrô Liberdade, ruas e mais ruas de livrarias evangélicas entremeadas de restaurantes japoneses chineses, coreanos, tailandeses, vietnamitas, baianos, mineiros.
Depois de Londres e Nova Iorque, São Paulo é talvez a cidade mais humanamente diversa do planeta. Aqui temos mais de cento e vinte comunidades étnicas e linguísticas.
A cidade onde acontece a maior Parada do Orgulho Lgbtquia….+ e da Marcha para Jesus do mundo, eventos que lotam hotéis e agita o comércio.
E quanto se pode dizer sobre a corrida da Fórmula 1, São Paulo Fashion Week, as feiras comerciais e de tecnologia, ciência e mega shows? Dos mais de 130 museus, a maioria com entrada gratuita ou de pequeno valor? Muita coisa interessante acontecendo sempre.
Então, que tal fazer um tour diferente? Uma imersão na cultura paulistana? Caminhando entre o povo, observando de perto tanta gente trabalhadora, que gasta uma hora e meia a duas, três horas diárias se deslocando para ir ao trabalho, todos os dias, e mesmo assim aprecia o visitante e saúda a todos que chegam com boa disposição?
São Paulo, fundada em 25 de janeiro de 1554, completará 470 anos. Já não tem garoa. O clima mudou, Sofreu no passado com os populistas do “rouba, mas faz!” e ainda busca encontrar politicos e politicas de bem-estar-social e justiça. Cidade que tem grandes times de futebol e universidades. Pizzarias e padarias deslumbrantes. De muita gente bonita. Cidade de minhas filhas e filhos. Cidade que se reinventa.
Obrigado São Paulo por me acolher.
Ageu Heringer Lisboa, psicólogo.
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