Zenon Lotufo Jr.* e Zenon Lotufo Tertius**

Na noite de 6 de março de 1983, em New Bedford, Massachusetts, Cheryl Ann Araujo, uma jovem mulher, mãe de duas filhas, entrou em um bar em busca de cigarros. Foi agarrada, jogada sobre uma mesa de bilhar e estuprada por quatro homens. A cena foi presenciada por outros frequentadores da casa, que não intervieram.  O caso alcançou bastante repercussão e os quatro agressores foram levados a julgamento, durante o qual o advogado que os defendia procurou demonstrar – como em tantos outros casos semelhantes – que a vítima era pessoa de reputação bastante duvidosa, estava bêbada na ocasião e se oferecera aos estupradores, ou seja, que era dela a culpa pelo ocorrido. Os quatro réus foram condenados, mas o fato de o nome da vítima ter sido amplamente divulgado, bem como muitos pormenores de sua vida íntima, forçou-a a mudar-se para Miami, Flórida, onde morreu aos 25 anos em um acidente de carro.

O caso inspirou o filme “The Accused” (entre nós, “Acusados”), estrelado por Kelly McGillis e Jodie Foster, tendo rendido a esta o Oscar de melhor atriz em 1989.

Na época, como antes e como agora, fica evidente a tendência de muita gente de colocar sobre a vítima a culpa por violências sofridas. Pertenceriam a esse quadro as perguntas supostamente formuladas pelo delegado inicialmente encarregado de investigar o estupro múltiplo perpetrado contra uma adolescente – em caso ocorrido entre nós e que obteve bastante repercussão – perguntas que implicariam sugestão de haver ela provocado ou facilitado o bárbaro incidente.

Por essas e por outras, é bastante bem-vindo o pedido feito ao Supremo Tribunal Federal pela Procuradoria-Geral da República, e que começou a ser julgado semana passada, visando a que sejam vedadas “expressamente tanto a prática de desqualificação da vítima, em geral, promovida pela defesa do acusado do crime, como a consideração ou a ratificação judiciais de alegações nesse sentido, que direcionem o julgamento respectivo para a absolvição do acusado ou, de algum modo, o beneficiem na aplicação da pena.”

Pesquisas em psicologia social podem ajudar a lançar luz sobre essa tendência ao mesmo tempo muito humana e muito desumana de culpar as vítimas, e que percorre a história da espécie desde quando se tem notícia. Está associada a uma visão da justiça que leva as pessoas a crer na existência de um mecanismo inexorável que tanto pune quanto premia: se houve erro, tem de haver punição e sofrimento e, se houve sofrimento, este se deve a algum erro ou pecado; mas também, se está se dando bem fez por merecer. Para os amigos do bíblico Jó, crentes em um mundo justo, era inconcebível que o sofrimento deste não se devesse a pecados, sendo um dos principais objetivos desse livro da Bíblia Hebraica o de contestar aquela noção: homens bons e corretos também sofrem, o mundo não é justo, lição que também encontramos nas palavras de Jesus.  Mas, como acontece com muitos outros ensinamentos bíblicos, prevaleceu a versão equivocada.

Para os gregos antigos a justiça é a força que mantem o Universo em ordem, os astros em suas órbitas, as estações do ano em sua regularidade, os seres humanos em suas devidas posições sociais. Servos, senhores, soldados, cada qual tem sua própria justiça, que corresponde a atuar adequadamente em seu respectivo papel. Erros humanos perturbam essa ordem, que será necessariamente restabelecida pela ação humana ou por forças (e seres) supranaturais.

Em suma, é forte nas culturas que mais influenciaram a nossa, a crença de que o mundo é justo e que as pessoas recebem sempre o que merecem. E debelar essa crença encontra sérias resistências por fatores que se entrelaçam e se sustentam entre si; fatores de ordem psicológica, religiosa e política.

 A persistência dessas crenças e os problemas que delas decorrem levaram Melvin Lerner, durante muitos anos professor de Psicologia Social na Universidade de Waterloo, a dedicar quase uma vida aos aspectos psicológicos da justiça, sobretudo à que foi chamada “Hipótese Mundo Justo” ou “Falácia Mundo Justo”.

Comentando um caso em que a vítima de um estupro foi vista com pouca simpatia por um júri que absolveu os estupradores, Claire Andre e Manuel Velasquez assim se referem ao ponto:

A necessidade de ver as vítimas como os recipientes de seu justo mérito pode ser explicada pelo que os psicólogos chamam de Hipótese do Mundo Justo. De acordo com a hipótese, as pessoas têm um forte desejo ou necessidade de acreditar que o mundo é um lugar ordenado, previsível e justo, onde as pessoas obtêm o que merecem. Essa crença desempenha uma função importante em nossas vidas, uma vez que, para planejar nossas vidas ou alcançar nossos objetivos, precisamos presumir que nossas ações terão consequências previsíveis. Além disso, quando encontramos evidências que sugerem que o mundo não é justo, agimos rapidamente para restaurar a justiça ajudando a vítima ou convencendo a nós mesmos de que nenhuma injustiça ocorreu. Ou prestamos assistência ou decidimos que a vítima de estupro deve ter pedido por isso, o sem-teto é simplesmente preguiçoso, a estrela decadente deve ser uma adúltera. Essas atitudes são continuamente reforçadas nos onipresentes contos de fadas, fábulas, revistas em quadrinhos, programas policiais e outros contos morais de nossa cultura, em que o bem é sempre recompensado e o mal punido.[i]

Lerner e pesquisadores que caminharam em suas pegadas realizaram grande número de estudos abordando várias áreas do comportamento humano sob o prisma dessa falácia. São especialmente interessantes, dentre essas pesquisas, as desenvolvidas por John T. Jost e Orsolya Hunyady, respectivamente das universidades de Nova York e Adelphi, apontando para o fato de que a cultura atual é permeada por ideologias que permitem às pessoas “justificarem e racionalizarem o modo com o as coisas são, de tal forma que situações sociais, econômicas e políticas atuais tendem a ser percebidas como justas e legítimas.” A visão de uma família com crianças pequenas dormindo em noite fria debaixo de uma marquise, a notícia de pessoas fugindo desesperadas de conflitos armados, entre tantos e tantos fatos tristes e trágicos a que assistimos a cada dia, são de molde a perturbar qualquer pessoa.  Só que essa perturbação nem sempre acontece e cabe perguntar por quê. Ora, número crescente de pesquisas, envolvendo inclusive escaneamento cerebral, indica que reações de empatia ou de compaixão são inerentes à natureza humana: citamos, p. ex. a coletânea “The Compassionate Instinct”, organizada por Keltner Marsh & Smith, os artigos e livros de Jean Decety, da Universidade de Chicago, De Waal, com seu “A Era da Empatia”, ou ainda “The Psychology of Compassiona and Cruelty”, organizado por Thomas Plante, de Stanford, e do qual Lotufo Jr. e os professores  Francisco Lotufo Neto e Ricardo Gouvêa participaram com um dos capítulos. Ou seja, a ausência de compaixão em situações como as mencionadas é produto de alguma interferência que desativa áreas importantes do cérebro. Agentes destacados dessa desativação são as referidas crenças em um “mundo justo”, formas de acreditar e de pensar que permitem dormir em paz porque se está convencido que cada um está recebendo o que merece. Logo, “não tenho nada a ver com isso”.

Conservadorismo político como ideologia de justificação do sistema

Os trabalhos de Jost e colaboradores explicam como as ideias conservadoras tranquilizam ao assegurar que as coisas são como deveriam ser.[ii] O conservadorismo é, pois, uma Ideologia Justificadora do Sistema (System-Justifying Ideology), como explicam Jaime Napier e John Jost: 

“A pesquisa mostra que o conservadorismo político é uma ideologia de justificação do sistema na medida em que está associado ao endosso de uma gama bastante ampla de racionalizações das atuais instituições e arranjos sociais, econômicos e políticos”. Trabalhos anteriores revelam que o endosso de crenças que justificam o sistema está geralmente associado a alta satisfação pessoal, bem como aumento do afeto positivo e a diminuição do afeto negativo (Lerner, 1980; Major, 1994; Wakslak, Jost, Tyler, & Chen, 2007); isso é conhecido como a função paliativa da Ideologia Justificadora do Sistema (Jost & Hunyady, 2002).

Segue-se dessa linha de raciocínio que as tendências de justificação do sistema podem fornecer uma espécie de proteção ideológica contra as consequências hedônicas negativas da desigualdade social e econômica.

É mais do que hora de dar um basta jurídico às condutas tributárias dessas falácias perniciosas.

  • Filósofo, teólogo e analista transacional. Doutor em Psicologia da Religião pela PUC-SP, autor, entre outros, de. “Teologia e Plenitude Humana: Como ideias sobre Deus podem gerar seja integridade, seja atrofia da personalidade”.

** Promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo e Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa


[i] ANDRE, C. & VELASQUEZ, M. (1990). The Just World Theory.Issues in Ethics,3 (2), disponível em http://www.scu.edu/ethics/publications/iie/v3n2/justworld.html acessado em 12.04.2008.

[ii] A Teoria da Justificação do Sistema sustenta que as pessoas são motivadas a justificar e racionalizar a maneira como as coisas são, de modo que os arranjos sociais, econômicos e políticos existentes tendem a ser percebidos como justos e legítimos. [JOST, J. T. & HUNYADY, O. (2005). Antecedents and Consequences of System-Justifying Ideologies. Current Directions in Psychological Science, 14 (5): 260-265.

O que ler:

The Justice Motive in Social Behavior. Melvin J. Lerner & Sally C. Lerner (Organiz.)

The Justice Motive in Everyday Life. Michael Ross & Dale T. Mileer (Organiz.)

Social and Psychological Bases of Ideology and System Justification. John T. Jost & Hulda Thorisdottir (Organiz.)

Ressonância da psicanalista paulistana Gabriela Mourão:

Querido Zenon, mais uma preciosa contribuição, muito importante de ser pensada. Muito obrigada por nos enviar.

O seu artigo me fez lembrar também da teoria de Ferenczi , com a tendência de desmentir a vítima, de desacreditá-la. Por detrás desta crença, também existe suposição de que a vítima fez por merecer.

Numa criança em formação, que repetidamente é vítima de atos injustos, perversos, sem uma interferência neste processo, ela pode vir a se identificar com o agressor, gerando graves consequências psicológicas.

O que me preocupa no meio cristão atual, são algumas pregações sobre amar o inimigo, tornando-se amigo do inimigo. Acho que há um certo perigo em alguns casos, pois quando existe uma delinquência já instalada, faz-se necessário medidas protetivas para a vítima.

Penso também, dentro de um contexto bíblico maior que, quando Jesus nos ensina a amar os inimigos, Ele nos ensina a “pagar o mal com o bem”, a não praticarmos também os mesmos atos injustos, violentos e maus e assim, aprendermos a nos conscientizarmos de quem somos e de como agimos. Mas, isto não significa que não podemos, bem como devemos colocar um BASTA, especialmente quando há um padrão instalado de agressões.

Jesus mesmo colocou limites claros para os eruditos escribas e fariseus de sua época, chamando-os de hipócritas e raça de víboras. No meu entender, esta confrontação, não deixa de ser um basta, um limite às injustiças praticadas.

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