Impressões de um breve passeio na manhã do dia 01 janeiro 2025 nas proximidades do palco do Show da Virada na Av.Paulista com Av. Consolação.

Hospedado no final da Rua Minas Gerais esquina com Av. Dr Arnaldo, a 300 mt do Hospital das Clinicas, saí para caminhar às 09h. Uma boa surpresa ver e sentir a cidade ainda silenciosa, zero automóveis por vários minutos, até que aparece um ônibus, um carro, e longos minutos até vir outro.  A cidade descansa da agitação do dia anterior que se estendeu até as 03hs da manhã, na despedida de 2024 com esperança de um feliz 2025.

Este ponto está num planalto e liga as zonas leste, a oeste, a sul e a norte da cidade, com linhas de metrô subterrâneas e corredor de ônibus na superfície. Numa pracinha é que se arma o palco para que músicos animem a multidão. De frente do palco tem-se a vista em profundidade da Av. Paulista, lugar de grandes eventos como a Corrida de São Silvestre, aParada do Orgulho LGBT3QUIA…+.  e manifestações políticas.

Situada numa rica região da cidade, lotada de cinemas, restaurantes com especialidades regionais e internacionais, torres de tv, livrarias, universidades, próxima de belas igrejas, ricos shopping centers, tribunais de Justiça e museus, tem também três grandes cemitérios;  do Araçá, dos Protestantes e o da Consolação a 10 minutos à pé do Estádio do Pacaembu. Nos muros do Araçá, defronte de um hospital do complexo do H.C.  avistei certa vez uma pixação: “Terra para os vivos!”.

Nesse entorno geográfico se vê noutros dias e horas a complexa tessitura social paulistana, com suas disparidades extremas: lojas de grifes europeias, circulação de Porsches ao lado de Brasílias amarelas. Nas calçadas, resistentes bicho-grilos hippies expõem artesanatos com tonalidade mística, como adornos de cristais “energéticos” e o reggae sonorizando a avenida. Depara-se com turistas de todo canto, vendedores de livros e CD antigos, mães guaranis com crianças esperando ajuda, adolescentes e jovens de tribos urbanas tatuados, com piercings e modas customizadas.

Uma síntese da alma da cidade que acolheu mais de cem comunidades étnicas com suas línguas, religiões, conhecimentos e musicalidade, provendo-a de uma cultura tão diversa e global.

Neste breve circuito matutino logo percebi os restos da festa espalhados nas calçados e garis iniciando a limpeza. Passei ao lado de gente dormindo ou encostada em parede e porta de loja e botecos. Jovens com visível dependência de drogas, vários deles travestis pobres, com visual de famintos e desvitalizados, sem nenhum glamour dos carnavais. Gente que dia e noite está nas ruas, suas casas sem parede e teto. Típos humanos com olhar perdido, de quem as pessoas geralmente se afastam com exceção de alguns poucos samaritanos que se aproximam e oferecem escuta e cuidados humanizadores, como o pessoal da Cristolândia e do Padre Lancelotti , numa região mais central

Observo alguém vindo em minha direção e eu processando a aproximação, já antecipando algum pedido. Era ‘uma alguém’ que me abordou com cuidado, pedindo desculpas, dizendo que não queria dinheiro e se eu podia pagar um lanche. Eu disse que sim e aí ela me apontou um quiosque numa estação de metrô. Alta, magrela, reta na frente, percebi que era uma travesti. Seguimos e perguntei-lhe o nome e ela disse: – Mariana. Perguntei-lhe onde morava: – na rua; onde mora a família? – São Paulo. Tem mãe viva? – Sim, mas não a vejo a tempos. -Mariana, você já teve outro nome? – Sim, mas adotei outro.

Enquanto caminhávamos eu procurava deixar a conversa fluir e vivenciava um incômodo sentimento – porque alguns passantes nos olhavam com certa surpresa o que me fazia supor que elas estranhavam nos vendo, eu, “o normal”, alguém com jeito de velho saudável, ao lado de uma jovem envelhecida de uns 23 anos! Senti uma ambivalência cognitiva emocional. Querer ajudar alguém assim, que atravessa de repente nossa vida, se me tornou algo reflexo, desde criança, graças ao exemplo de toda uma vida de meus pais, e consolidado pela contínua leitura dos evangelhos! Um imperativo ético cristão internalizado. Mas me surgiam sentimentos que denotavam uma suspeita defensiva de que ela poderia me envolver em problemas, atraindo outros e outras. Um sentimento de vulnerabilidade que logo passou, mas não o incômodo de ser incapaz de proporcionar algo melhor. `

Nos pensamentos, surgiu a tentação racionalizada de politizar a questão, lavar minhas mãos, ao responsabilizar governos e xingar o ‘sistema” pela existência de tantos homens e mulheres desfigurados, doentes, gente que sobrevive de sexo e drogas nas ruas, subvivendo sob viadutos e árvores. Ou espiritualizar o mal e o sofrimento social e individual como apenas consequência de escolhas individuais e pecado destes anônimos de rua. Duas atitudes reducionistas e alienantes de gente que se julga moralmente superior e que não contempla outros ingredientes do problema, como as intrincadas relações familiares, abusos morais e sexuais sofridos na infância e adolescência e teologias do Deus policial.  

Sobre os quebrados, doentes e pecadores Jesus nos diz para alimentá-los, dar um copo d’água, visitar na prisão, sermos hospitaleiros (Mt 25.35-36). Algo pequeno mesmo, numa relação pessoal, é o que importa e que Deus nos pede e abençoa.

Chegamos ao quiosque. Tinha três PMs lanchando. Nos observavam como é de praxe policial talvez nos estranhando como dupla.  Encarei brevemente o PM como que dizendo, “tudo bem aqui”, e me virei para o mostruário dos lanches. Mariana perguntou se podia pedir um e apontou para o mais caro e melhor, um lanche natural, e eu disse sim. -E prá beber, pode um refri? Eu disse que não pagaria porcaria ruim pra saúde, que visse opção mais saudável.  Ela disse: – Puxa, pela primeira vez vi alguém que não gosta de Coca! E pediu um suco.

Paguei a conta, olhei para ela e me despedi. Ela agradeceu e eu saí.

Horas após, já de volta ao apto continuo com a Mariana no pensamento e coração, tanto que descrevi esse encontro. Quantas vidas sob confusão mental, feridas emocionais e físicas, com carências múltiplas estão aí? Não são as que Jesus nos ordena chamar para o banquete? Antes, ao dares um banquete, convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos; e serás bem-aventurado, pelo fato de não terem eles com que recompensar-te; a tua recompensa, porém, tu a receberás na ressurreição dos justos. (Lc. 14.13-14)

Deus seja misericordioso sobre todos!

02/01/25

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