Resenha* de O Grande Abismo (The Great Divorce) – C.S Lewis. São Paulo: Editora Mundo Cristão, 1986, 2a. edição. Ageu Heringer Lisboa.
A partir de dezembro 2005, com o primeiro filme da série Crônicas de Nárnia estreando no Brasil, o grande público tem a oportunidade de se aproximar das obras Clive Staples Lewis. C.S.Lewis nasceu em 29 de novembro de1898, num subúrbio de Belfast, Irlanda e faleceu em 23 de novembro1963 em Oxford, Inglaterra, no mesmo dia do assassinato de John Kennedy. Foi professor em duas das mais prestigiadas instituições da Inglaterra: na Universidade de Oxford, de 1925 a 1954 e de 1954 a 1963 na Universidade de Cambridge. É referência entre grandes autores e teólogos protestantes do século XX. Sua formação erudita mostra influências de Platão, Agostinho, Dante, Milton, George Mac Donald, Tolkien. Este último, católico devoto, célebre autor da série Senhor dos Anéis lhe aproximou decididamente do Deus cristão.
Em O Grande Abismo, Lewis inicia com um alerta de que se trata de um exercício de imaginação sem pretensão de “despertar curiosidade fatual quanto aos detalhes da vida pós-morte” (1986, p5). No décimo quarto e último capítulo, concluindo seus diálogos e observações dos diálogos entre Fantasmas dos humanos nas regiões do Vale da Sombra da Morte e na Sombra da Vida com o Espírito e diversos Anjos, renova a advertência: “Não peça a uma visão num sonho mais do que ela pode dar-lhe… Se vier a contar que viu, deixe bem claro que não passou de um sonho. Não dê a qualquer tolo o pretexto de pensar que você está alegando ter conhecimento daquilo que mortal algum conhece. Não quero mentirosos entre os meus filhos”(1986, p.91). Avisos compreensíveis já que muitos, piedosos mas pretensiosamente, se aventuram sistematizar e programar eventos escatológicos.
Lewis reage à obra do romântico William Blake (1757 – 1827) “O casamento do Céu e do Inferno” ponderando que admitir uma reconciliação entre estas duas realidades, com todas as estradas conduzindo para o mesmo centro como “desastrosa”. Pelo contrário, escreve, “estamos num mundo em que cada estrada…se divide em duas, e em cada encruzilhada você tem de tomar uma decisão. Mesmo no nível biológico a vida não corre como um rio e sim se desenvolve como uma árvore” (1986, p.3).
Sua narrativa ficcional fala da vida como uma grande viagem, em que as atitudes e escolhas que assumimos em nossos relacionamentos com os demais vão determinando nosso modo de ser com consequências eternas. Um duro golpe no universalismo teológico que, independentemente das escolhas das pessoas, salva a todos indistinta e compulsoriamente. O Grande Abismo é visto como a Divina Comédia de Lewis pela crítica literária Kathryn Lindskoog.
Têm-se diversos tipos humanos como Fantasmas deixando transparecer sinteticamente a natureza das situações relacionais e dramas existenciais, os debates de cada um com a própria consciência ou com o Destino, o Sistema, em diálogo com Anjos Luminosos e com o Espírito que se empenham em encaminha-los à uma consciência depurada de erros, de auto-justificativas e ilusões. Como num filme tcheco de 1963, Um dia, um gato, dirigido por Vojtech Jasny, em que as pessoas assumem cores específicas de acordo com a paixão que os domina numa constrangedora auto-revelação, em O Grande Abismo as pessoas, homens e mulheres, se encontram possuídas por paixões irracionais que governam suas razões, orientam suas vidas e determinam seu destino.
A viagem para as regiões do entretempo do inferno e do céu, região das sombras da morte e das sombras da vida, pode ser entendida como o campo da consciência, campo de batalha por excelência. Viagem desde o início marcado por xingamentos, competição, isolacionismo, sopapos, de seres incapazes de convivência, prisioneiros de si mesmos. Uma amostra nua e crua da natureza humana como no Ensaio da Cegueira de José Saramago. Saramago, ateu militante, numa lógica brilhante conduz seus cegos personagens a progressiva perda de lucidez, resultando na destruição da vida civilizada, um pequeno mundo caotizado numa infernal latrina entupida, por ter desaparecido qualquer transcendência, virtude social e traço de dignidade humana, com sujeitos entregues à própria ambição de sobrevivência. “Constroem” um lugar sem a assepsia do inferno bíblico!
Os personagens que convivem e se debatem no Grande Abismo tipificam algumas de nossas mais comuns emoções, manias, obsessões e desastrosas certezas. Fantasmas de intelectualizados e sofisticados, mães possessivas, poeta, comunista (na época de Lewis, um tipo muito em voga e respeitado) o livre pensador, o religioso, o cético, a auto-centrada que não pensa nada além de si mesma, pregadores, teólogo, o pigmeu e o trágico e sensual, e quem escolhe a própria infelicidade. Cada um esteve diante de oportunidades de re-visão, chamado a iniciar uma nova direção, pelo desapego de antigas posições.
O fenômeno psíquico, a dinâmica psicológica pode obstruir ou cooperar com a dinâmica sagrada, com o chamamento do Espírito. Este utiliza acontecimentos inesperados, nossos acasos e incidentes, fala-nos através de eventos insólitos (como na aparição de uma manada de unicórnios guerreiros (1986, p.46), e mesmo de obviedades cotidianas. Mais do que isto seria robotizar o humano. É preciso que “quem tem olhos, que veja, e quem tem ouvidos, que ouça!”; homem e mulher respondem com sua liberdade de ser e não-ser. Impressionante a tensão dialética da Graça de Deus e da Liberdade humana.
Teremos discussões que ilustram questões teológicas que opõem liberais e conservadores, com Lewis mostrando o alcance e as insuficiências de cada uma. “…por amor à sua alma, lembre-se. Você sabe que nós jogávamos com dados viciados. Não queríamos que o outro fosse sincero. Tínhamos medo da salvação sem disfarces, temíamos um rompimento com o espírito da época, sentíamos aversão pelo ridículo e, (acima de tudo) tínhamos medo de nossos temores e esperanças espirituais” (1986, p.29).
Para quem se aferra à convicção de que o que vale é a sinceridade, o alerta de que “embora as crenças sejam sinceras no sentido de acontecimento psicológico na mente humana…os erros sinceros…não são inocentes”(1986 p.31). O que se aplica aos que gostam de “revelações” de um caminho evolutivo trazida por algum médium. Encontraremos ainda o teólogo para quem Deus se resume a uma questão gramatical e o (artista ou filósofo) que ama mais a representação do que o representado.
Através dos diálogos vão sendo expostas certas representações de Deus como o deus conveniente, bonachão, o metafísico, sem força nem realidade para intervir na História. Lewis critica assim o espírito de sua época (e da nossa) que iria rejeitar totalmente a ideia cristã do Deus Pessoal, Senhor da Criação, não manipulável, que quebra as ilusões e nos chama à Realidade. Tema que reaparecerá nas Crônicas de Nárnia, especialmente na última, A Última Batalha.
Prosseguindo a viagem têm-se imagens das proximidades do Céu que destacam uma nova materialidade e a inadequação de nossos sentidos para contatá-los e desfrutá-la. Brilhos e cores exuberantes, consistências, texturas e perfumes superlativos, numa natureza que nos surpreende magicamente. Assim compreende-se como nossas tentativas de conhecimento natural de realidades espirituais ou das realidades futuras revelam a inadequação dos recursos de que dispomos. Somos atraídos a este conhecimento; insistentemente os humanos buscam antecipações do Outro Lugar, outro Lar, a U-topia.
O Reino dos Céus é a Eu-topia superior, revelada, que se ergue distinta das várias utopias propostas. Mas como acessá-lo se não for pelo Caminho que desceu do Céu, como na escada de Jacó? Os que entraram em acordo com a Providência descobrem posteriormente que saíram da miragem, deixaram o passado e adentraram a Realidade, livrando-se da limitação e atração enganosa dos sentidos e dos hábitos.
O Caminho para a Realidade Eterna passa pela renúncia à antiga vida, a resistência aos hábitos pecaminosos, a despir-se das velhas roupagens dos hábitos e da cultura, das racionalizações auto justificadoras. Assim com certos desejos profundos e certas inclinações involuntárias que aprisionam no passado e impedem o futuro. É o caso de um lagarto grudado num Fantasma, próximo ao seu ouvido, que atua reforçando-lhe a velha natureza corrompida, sussurrando-lhe propostas e descaminhos. A natureza réptil tem que morrer para ser transformada, numa necessária metamorfose. Aos poucos surge um belo e forte cavalo: “…Nada, nem mesmo o que é mais inferior e mais bestial, deixará de ser ressuscitado se se submeter à morte. O corpo natural é semeado, o espiritual ressuscitado.. Carne e sangue não poderão subir as montanhas … pela sua fraqueza. O que é um lagarto comparado a um garanhão”?
No que parece uma categoria agostiniana para quem o mal é insubstancial, conclui-se que, diante do bem, “o mal não teria peso algum com que possa ser registrado, mesmo diante do menor momento de gozo sentido pelo menor de todos no céu. O mal não pode ter êxito mesmo em ser mau com tanta realidade como o bem é bom” (1986, p.88). O trágico fim da alma encolhida e fechada em si mesma, que resiste aos apelos da consciência e da Graça é a morte eterna, de livre escolha. Tanto o Universalismo que compulsoriamente salva a todos como a Predestinação que anula a liberdade são confrontados com uma verdade mais profunda: não se pode conhecer a realidade eterna por meio de uma definição. Toda tentativa de vislumbrar a forma da eternidade exceto através da lente do tempo destrói o seu conhecimento da liberdade (1986, p.90). Vale repetir: será tolice supor que se possua qualquer conhecimento daquilo que mortal algum conhece. Despertai do sonho!
Notas: Um Dia, Um Gato – 20 de Setembro de 1963 | Filmow De Lewis temos no Brasil: Perelandra e Longe do Planeta Silencioso duas ficções sobre um outro mundo sem o efeito da Queda pela Ed. Co-lab; Cristianismo Básico (Cristianismo puro e simples) e As Crônicas de Nárnia pela ABU Editora, Milagres, O Problema do sofrimento, Cartas do Coisa Ruim (ou Cartas do Inferno), Os Quatro Amores e O Grande Abismo pela Editora Mundo Cristão. A série das Crônicas de Nárnia inicialmente pela ABU Editora e agora pela Martins Fontes. Recentemente Deus em Questão que compara as biografias e percursos intelectuais e espirituais de Freud e Lewis foi lançado pela Editora Ultimato. Para amplo acesso ao universo C.S.Lewis acesse o link Gabriele Greggersen – CSLewis.com.br (ultimato.com.br) que remete a muitos outros materiais, sites, estudos e biografias. Também Livros de CS Lewis: 16 melhores obras teológicas e filosóficas do autor (osmelhoreslivros.com.br).
Ageu Heringer Lisboa, é psicólogo e mestre em Ciências da Religião. ageuhl@gmail.com
*Publicado originalmente em março de 2006 no Liberdade, Caráter, Escolhas e Destino Humano, por Ageu Heringer Lisboa (verdestrigos.org).

Muito interessante e profundo.
Obrigado, Wilber. O C.S. Lewis conhece bem a alma humana. Bem atualizado com as ternas questões sobre o sentido da vida, da verdade e da ética.